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Artistas

Né Barros

Vooum is a beautiful series of explorations along the theme of geography: the geography of travel and the geography of the human heart. It utilizes one of the most thoroughly satisfying juxtapositions of film and live mouvement I’ve ever seen.
The film footage (images of maps, airplanes, a variety of locales - some exotic, some familiar) firmly establishes the theme of travel.
The movement poignantly embodies the impossibility of ever arriving at one’s final “destination”. The individual dancer’s movement vocabulary is lush and released, but is often contrasted with a cooler sense of geometric precision in the form of diagonal group formations. One of the most impressive aspets of this piece is that the projected images and the live images never seem to compete with one another. The peacefully co-habit the stage, resonating off each other in endlessly fascination ways.
(Roger Copeland)
“(...) focusing [Vooum] almost exclusively in a work around the expressive potencial, but not theatrical, of the body, the choreographer finds a different movement poetic, em que falls to the textures from the coreographic phrasinging to guide the dramaturgy of the piece, where the significations expands themeselfs creating new readings.”
Maria José Fazenda (dance critic)
“(...)o protagonista absoluto aqui é ainda e sempre o corpo, que declina, por variantes, em souplesse e com precisão, os códigos escolhidos por Né Barros e pelos seus intérpretes para esta criação ‘abstracta’ e no entanto ‘narrativa’. Em que sentido? O corpo narra com a ‘corporeidade’, inscrevendo-se em espaços e ambientes sonoros e luminosos, que dialogam com o gesto que nunca é descritivo, mas antes enigmático e estratificado de significados no desdobrar-se das sequências do espectáculo. Os corpos de Vaga, entre tacto e contacto nas dinâmicas de grupo, encontram-se a actuar numa localização indefinida, sem limites precisos, onde a ‘realidade’ entra, por gestos e citações, só através do vídeo e da manifestação gestual da alma dos bailarinos.(...)”
Elisa Guzzo Vaccarino (ensaísta de dança)
“(...) Vaga desenvolve-se, por oposição, num campo a-histórico e a-dimensional, num bloco ou estádio equivalente ao universo estratificado dos jogos de vídeo, onde circulam máquinas celibatárias ou máquinas desejantes (se adoptarmos as terminologias duchampiana e deleuziana), que apontam para esboços mínimos de narrativas (imediatos e inconclusivos) por forma a ‘fazer ver como é invisível a invisibilidade do visível’ ou tornar a ‘visibilidade livre de toda a figura’.
Os corpos, em trânsito, multiplicam-se na semelhança e articulam-se em sobreposições como layers de uma imagem única, ensaiando estratégias de compensação de um equilíbrio contingente...(...)”
João Sousa Cardoso, in programa do Teatro Nacional S. Joã
Condenado a sobreviver aos constrangimentos da ordenação do real, a dualidade do corpo produtor/descodificador de signos adquire o seu significado mais puro no confronto com o Outro. Partindo de um contexto de trabalho experimental, a coreógrafa Né Barros percorre o território das tensões da comunicação e dos sentimentos rumo ao transcendente. Em Dia Maior, o tempo reclama a dimensão fragmentada das emoções físicas. Existirá um sentido supremo que encontre no corpo em movimento, veículo do pensamento simbólico, o seu sustentáculo primordial?(...). Dia Maior, gerado do ventre de um contexto de trabalho manifestamente ensaísta, revela uma sobriedade interpelativa, nua de preconceitos e inspiradora de movimentos, abrindo novos espaços (...), de acolhimento e procura, de análise e interrogação, prontos a serem ocupados pela epifania do Outro, no confronto das múltiplas relações e sentimentos, na proximidade primária intrinsecamente violenta da paixão e no isolamento social das multidões que anulam o indivíduo face ao seu desejo frustrado, consequentemente, auto-antropofágico e alucinatório.
(Anastácio Neto)
com muitos acordares, muitas noites
Lucinda Canelas
Né Barros e Alexandre Soares trabalham juntos há muito tempo, mas nunca como agora. Desta vez o músico esteve sempre no estúdio com a coreógrafa e os sete bailarinos, participando num processo de "composição simultânea" que viria a fazer de "Dia Maior", a peça que hoje e amanhã se apresenta no Teatro Carlos Alberto, no Porto, uma experiência partilhada que se tornou possível graças a um "contágio" mútuo.

"Foi muito importante poder contar com o Alexandre no estúdio desde o primeiro dia de trabalho", diz Né Barros. "Esta proximidade permanente permitiu-nos optimizar estratégias de composição. Como já colaborámos em quatro criações, foi fácil perceber quando é que a música devia influenciar o movimento e vice-versa. Havia sempre uma tensão muito estimulante."

Em "Dia Maior" - coreografia para sete bailarinos mais um (o músico) - Barros explora uma série de "micronarrativas" que traduzem situações comuns. "Não são reproduções do quotidiano, mas momentos que o público pode identificar", explica, defendendo que a sua dança não procura aproximar-se da realidade, mas criar espaços de narração.

"Nos meus trabalhos há sempre um apelo à narração. Basta haver um corpo que se move, por mais abstracto que seja, para que haja uma história para contar, a referência a um passado e a um presente."

À semelhança do que aconteceu em trabalho anteriores como "No Fly Zone" ou "Vaga", Né Barros começou por definir um dispositivo de trabalho, que em "Dia Maior" passa pela criação de um ambiente de instalação em que músico e bailarinos dividem o palco. Seguiu-se um período de experimentação em que se exploraram sonoridades e frases coreográficas até se chegar a uma estrutura temática e de composição que o improviso ajuda a moldar. "As minhas peças têm sempre uma estrutura flexível - há uma escrita coreográfica formal que deixa sempre espaços de variação ou de improvisação."

O resultado é um trabalho em que os intérpretes, em momento de grupo ou na intimidade de um solo ou dueto, exploram as potencialidades de uma sequência ou os efeitos de uma repetição de movimentos, evidenciando a irregularidade do tempo. "O tempo é uma construção. Neste 'Dia Maior' há muitos acordares, muitas noites, sem convencionalismos de horários ou de luz."

Lentamente, diz Barros, foi compondo "um baile extremo e estranho" em que se questiona a oposição realidade/ficção a partir de um ponto de vista muito pessoal. Ao contrário de criações anteriores - em que a experiência é sobretudo colectiva - "Dia Maior" privilegia a intimidade, apoiando-se num tema que atravessa toda a acção fragmentária - as relações afectivas. "Todos os intérpretes, sempre em cena, estão unidos por relações de proximidade ou exclusão. É nesta teia que tudo acontece."
I want you to know how much I enjoyed watching the DVD of "Story Case." It's tremendously haunting, a very chilling study of the existential human condition---of individuals estranged from their environment, unable to ever feel completely "at home" regardless of whether they're in an urban (man-made) environment) or in the "natural" world. Especially for the female performer, the work generated a sense of perpetual "migration," of being stranded in a "desert", both spatial and temporal.  We often feel a deep longing for complete absorption into a "continuous present" (made possible by sex or drugs or some sort of trance-inducing activity). But here she seems trapped in a present which is no longer connected in any meaningful way to either a past or a future.  The moment when she scarred her own bare back was especially powerful--as was the sequence in which she repeatedly "whistled" in a way that suggested both panic disorientation. This built beautifully into the frantic movements in which she rotated her body weight precariously onto the sides of her feet. And the theatrical elements of the mise en scene were richly imaginative: the suspended white rectangles were striking in their own right, but also very effective as projection screens.   I especially liked the moments when we saw images of the actual theater refracted onto the screens. The layering of images was also striking (when the projections appeared on the back of the male dancer and his shadow was then projected onto another surface). His shadow is especially powerful as he takes his shirt off over his head. The images near the end ---of the woman with the tree branch and a scarf over her head --powerfully evoke not only migration, but also the plight of a refugee. And the final image (in which she plays the guitar as the lights behind her intensify) felt empowering. I got the impression that she was "in control" of her own destiny for the first time in the course of the dance. Not sure if that's what you intended, but that's what was conveyed to me in a powerful way. Finally, it makes perfect sense to learn from the credits that some of the text is by Maurice Blanchot, because he's so good at constructing a "land without man": the sort of environment that begs only for our absence. So... Congratulations.
“A metáfora do viajante que todos nós somos, mesmo quando não nos deslocamos” A carreira de Né Barros confunde-se com a criação, no Porto, da estrutura Balleteatro. Desde o início dos anos 90 que tem vindo a desenvolver o seu singular percurso como coreógrafa, que nos últimos dez anos se tem vindo a cruzar por diversas vezes, de forma cúmplice, com o TNSJ, não só pela co-produção de alguns espectáculos (o primeiro foi L.M. – Lady Macbeth, em 1996), mas também pela sua colaboração regular em algumas produções teatrais desta casa, sobretudo como responsável pela coordenação de movimento. Nesta entrevista, a retrospectiva da sua obra serve, sobretudo, de mote para a exploração daquilo que mais importa reter: as suas ideias sobre a dança, a sua estética muito própria, a dicotomia entre criações mais radicadas num suporte pré-existente e outras tendencialmente mais abstractas.
RODRIGO AFFREIXO As criações da Né Barros inscrevem-se, de pleno direito, no panorama da dança contemporânea portuguesa (pelo que têm de experimental, de pós-moderno, de transdisciplinar…), mas demarcam-se, também, do trabalho de outros criadores, por dois aspectos fundamentais: um contínuo e elaborado burilar em torno da chamada “dança-dança” (desde sempre privilegiada relativamente a outras correntes como a não-dança, ou o teatro-dança) e um universo estético muito próprio, sempre coerente, muito “cénico”, algo futurista, permanentemente high-tech… Concorda?
NÉ BARROS Agrada-me a ideia dos meus trabalhos serem entendidos como “dança-dança”. É como se, de alguma forma, a minha exploração de corpos em movimento fizesse sentido. Isto é, apesar de se poderem reconhecer traços de alguma inspiração em diversas técnicas, eu tento criar novos desafios no que respeita ao potencial expressivo do gesto em si, sabendo que este “em si” não é uma abstracção em relação ao indivíduo que o executa. Por isso, existem sempre novas questões na análise e composição de um corpo-em-movimento. A dança, assim, não é um mero somatório de gestos, mas a resultante de uma crise, a de como esse corpo se afasta ou se aproxima de uma referência ou de uma narrativa, ou ainda de como esse corpo cede ou resiste a uma impessoalidade. A “dança-dança” expõe-nos à auto-referencialidade, ao meta-discurso ou a um processo de distanciação, mas nada disso nos subtrai necessariamente a emoções ou a experiências intensas. Podem-nos dar a matéria e as lentes para a vermos, mas continua a existir um universo inacessível com o qual temos de conviver. Tudo isso pode ser vivido com grande intensidade. A minha urgência não está na contestação como objectivo. O que posso dizer é que a inquietação, a necessidade de ver diferente e de responder mais claro estão sempre presentes. Habituei-me muito cedo a apreciar e a analisar a diversidade e a evolução da dança e das artes em geral, e hoje não temos um objecto hegemónico contra o qual reagir, pelo menos do ponto de vista das propostas artísticas. Nesta grande abertura, onde está a tradição? Na composição ou no léxico gestual? Nas estratégias de comunicação? Provavelmente em tudo isso, mas é absurdo pensarmos que a noção de composição nos coloca automaticamente na tradição. Noutro sentido, desde sempre senti o palco como algo muito estranho e com alguma rejeição enquanto caixa mágica ou máquina do artifício. No entanto, algumas das coisas que mais exploro são perspectivas e relações espaciais. Assim como os objectos cénicos ou cenografias, quando não inexistentes, têm uma função muito específica, são pensados como presenças com as mesmas valências dos corpos.
Das intenções programáticas do Balleteatro consta, a certa altura: “Uma procura de contemporaneidade da dança. Que se traduzirá pela actualização de materiais afins ao corpo em movimento e aos intervenientes cénicos e cenográficos. Privilegiando a relação com o ‘teatro’ – o texto, a dramaturgia, o ‘corpo sonoro’ –, alguns dos trabalhos apresentados manifestaram igualmente a ideia de instalação através da operação com outras fontes como as artes plásticas, vídeo, música ao vivo”. Quer-me parecer que esta busca se confunde com as próprias premissas estéticas do seu trabalho, iminentemente transdisciplinar, que tem vindo a explorar, desde o início, a desconstrução e os limites entre real e ficção…
A citação a que se refere é mais abrangente, no sentido de tentar situar as diversas criações da companhia através das propostas da Isabel Barros, das minhas e do próprio plano de actividades do Balleteatro. Mas eu não tenho um “programa”, no sentido de me situar criativamente. Na realidade, nem me ocorrem essas questões nos momentos de trabalho mais imersivos, como os de ensaios. Apenas posteriormente, e já com alguma distância, surge a análise – que, para mim, é um dos momentos altos e fundamentais do processo. Nesse momento sim, vou discernindo e desmontando o que está acontecer, não numa perspectiva programática mas funcional e afim ao objecto em concreto que está a ser elaborado. Deixo que a minha poética seja um trabalho em progresso, sentida e pensada também pelos outros. No que se refere ao meu trabalho, é verdade que me questiono sobre os limites, as ambiguidades ou as ambivalências entre o real e a ficção. Mas isto, como sabemos, é uma falsa questão no que se refere às artes. Nem no cinema, que aparentemente operaria essa dicotomia de forma optimizada, essa questão é rapidamente desmontada. A arte é construção e a partir daí o plano ficcional é iminente. No entanto faz diferença, partirmos de uma ou de outra noção. Os projectos interactivos tendem a romper com a dicotomia real e ficção, mas não a resolvem definitivamente. Outro exemplo: quando estamos a experimentar movimentos, faz diferença questionarmos o que é experiência de uma dada acção e o que é representação dessa mesma acção. No exercício de ambas não se pode distinguir, mas os resultados são afectados e diferem consoante o ponto de partida. Se tendemos para representar a acção, é mais provável que o resultado se torne algo mimético; enquanto partir da ideia da experiência do movimento em si permite abrir caminhos imprevistos. O que quero dizer é que, em última instância, não conseguimos escapar à representação e que existem questões que foram perdendo pertinência, mas tê-las presentes e conscientes no nosso posicionamento criativo pode fazer muita diferença. Um corpo, no seu movimento ou na sua imobilidade, é simultaneamente experiência desse estado e imaterial naquilo que evoca, é indivíduo e é imagem em movimento... A dança, para mim, nasce sempre desse momento crítico e incodificável e coloca-se fatalmente nos limites da representação. Este é o plano que mais me interessa e a desconstrução tanto é o processo como uma etapa de um processo para uma nova construção. Uma vez escrevi um pequeno texto em que dizia que tenho uma primeira questão e que era: o que vai acontecer àquele corpo, ali, só? Esta pergunta tem, para mim, valor de motor de uma descoberta a fazer sobre uma dada condição daquele indivíduo e naquele momento o corpo dançante ainda não existe, mas a partir do momento em que me coloco um problema estou a gerar uma pulsão necessária.
Essa possível relação com materiais ficcionais pré-existentes – como aconteceu em L.M. – Lady Macbeth (1996), Adormecida (1997) ou volta a suceder, agora, em With drooping wings – foi-se, esbatendo, nos últimos anos, a favor de exercícios tendencialmente mais abstractos e depurados em torno do movimento (entendido não só como mobilidade do corpo, mas como deslocação no espaço, como viagem). Surge, assim, a tetralogia constituída, sucessivamente, por Vooum (1999), No Fly Zone (2000), exo (2001) e Vaga (2003) – quatro variações sobre a deslocação: a viagem, a permanência, qualquer coisa entre as duas (como um vaivém) e a vaga (o que vai e volta, como as marés). Aqui radica a definição dos seus “movimentantes”, tal como surge no texto de apresentação de Vaga: “Num movimento que vai da multidão ao solitário […], vai sendo gerada uma nova terra de habitantes imperfeitos, incompletos. Os meus movimentantes”. Quais serão os seus movimentos neste espectáculo-síntese que agora propõe?
O termo “movimentantes” é um neologismo que uso para nomear uma pequena teoria sobre o corpo na dança. Mas tendo em atenção que, antes de mais, essa teoria é reflexo directo de uma prática e de um questionamento coreográfico, considerei que o termo deveria ser finalmente atribuído àquilo que lhe deu origem e que se iniciou com o espectáculo Vooum. A reconstrução que agora proponho permite realizar um percurso: da massa de corpos ao indivíduo só (exo) – circulação em circuito fechado (No Fly Zone) – paisagem humana em movimento (Vooum). Esta sequência caminha no sentido do fechado para o aberto, do escuro para o claro. Mas, por exemplo, apesar de este espectáculo, no seu conjunto, não se ancorar num texto ou em materiais pré-existentes, é possível pressentir um lado trágico e épico que normalmente se encontra noutros espectáculos que referiu. Contudo, concordo que poderíamos distinguir duas zonas no meu trabalho: uma de suporte mais textual e dramatúrgico, outra mais aberta nas temáticas ou mais abstracta, se quisermos. Em traços largos, a tendência tem sido ou para utilizar como ponto de partida materiais pré-existentes épicos e trágicos, textuais e explorados também musicalmente, ou pontos de partida ligados a condições do humano no mundo urbano, tecnológico e artificial. Mas essas duas tendências não seguem uma regularidade temporal, tanto surgem alternada ou consecutivamente como ainda com hiatos temporais. Penso que o que me faz voltar a materiais pré-existentes é quase como uma necessidade de me limitar e de, numa primeira fase, me concentrar em entender o outro (autor, compositor, etc.). Esse sentir é, contudo, provisório porque a partir de certo momento de criação o processo torna-se independente do ponto de partida, é indiferente partir de um texto ou não. Outro aspecto que diferencia os trabalhos é o das metodologias utilizadas no processo. Quando parto do Dido e Eneias, de Purcell, tenho o mito e a música como ponto de partida e tento activar a história da forma que mais me suscita curiosidade, e que é sempre a condição provisória e trágica do humano e das suas ligações. O objectivo da dramaturgia em With drooping wings era intensificar e explorar novos sentidos aos corpos em movimento numa perspectiva do trágico e também do épico do mito Dido e Eneias. Foi nesse sentido que convidei o Filipe Martins para a criação de um filme que funcionasse como uma antecâmara de uma história de amor, com o objectivo de multiplicar diferentes formas de vermos o trágico. Ou, ainda, para o espectáculo, o Manuel Casimiro por parte do seu trabalho como o “óvoide”, onde teríamos o lado do negativo, do estranho, da morte ou do simbólico, e o Carlos Guedes para uma intervenção sonora-musical com momentos de interactividade, pelo lado mais tecnológico.
No mesmo texto, refere: “’Deleuze diz-nos que o actor nunca interpreta uma personagem mas um tema. Para tal, é necessário que o actor seja ele próprio mudança, transmutação. ‘Este é, para mim, o grande tema do bailarino’”. Peço-lhe que explore esta ideia, fazendo também referência a possíveis criadores que a influenciaram decisivamente e ao seu método de trabalho com os bailarinos.
A grande questão que Deleuze nos coloca nesta citação é a da impessoalidade. O actor e o bailarino têm grandes afinidades, mas poderíamos ainda alargar o conceito de actor ao indivíduo social. O grande desafio parece ser, em qualquer caso, o do nosso agir ser mais no sentido evolutivo e progressivo e menos radicado e cristalizado. No caso da dança, esta matéria não é só resultado de uma proposta criativa, mas é sobretudo plano real de trabalho, seja no que concerne à própria capacidade performativa do intérprete, seja ao nível da construção do universo do espectáculo ou da performance. O termo “movimentante” envolve-se directamente com estas questões. É simultaneamente conceito e figura artística, teoria e ficção. Apesar de alterar metodologias de trabalho para trabalho, eu poderia dizer que o processo de trabalho que uso normalmente com os bailarinos é influenciado por tudo o que acabei de dizer. Muito rapidamente diria que associo uma familiaridade do gesto, onde sou eu a passar pela experiência do movimento e a configurá-la (não a figurá-la) a uma reescrita concreta do movimento, através do qual o bailarino conta, digamos, a sua história do outro. Do que vou dizendo, creio que se percebem algumas influências do considerado pensamento pós-moderno. Mas independentemente dos rótulos, as minhas influências vêm de diferentes áreas artísticas e filosóficas. No que se refere à dança, e a título de exemplo, posso dizer que me interessou o estudo do chamado movimento pós-moderno da dança americana, onde posso destacar a criadora Trisha Brown, por exemplo; ou o estudo das propostas coreográficas consideradas reificadoras, como Schelemmer ou Nikolais; ou o estudo da teatralidade e dos processos de materializar novas narrativas, como em Bausch ou, noutro sentido muito diferente, em Bagouet. Mas, como digo, são as influências mais em diversidade do que as específicas de um ou outro criador. Assim como posso nem apreciar a obra de um criador e interessar-me pelo modo como ele resolveu determinados problemas e deu novas resoluções.
Pode dizer-se que conseguiu criar uma equipa de colaboradores quase permanente, quer no elenco de bailarinos (há presenças quase crónicas, como o caso da Elisabete Magalhães ou da Sónia Cunha), quer no de criativos (o Alexandre Soares ou o Daniel Blaufuks, por exemplo). Essa cumplicidade e permanência é garantia de um work in progress ou não tem sido propriamente premeditada?
É sempre premeditada, mas não é sempre um work in progress. As minhas escolhas têm sempre por base o somatório de interesses artísticos específicos de cada um dos envolvidos na construção do espectáculo e interesses humanos (não conseguiria repetir trabalhar com pessoas conflituosas ou estranhas às relações pessoais e profissionais). No fundo, de forma directa e básica, diria que não conseguiria trabalhar com pessoas que não respeite artisticamente ou de quem simplesmente não goste... Quando digo que nem sempre se trata de um trabalho em progresso, quero dizer que como não tenho um macro-projecto ou um programa, como referi anteriormente, como ponto de partida, de trabalho para trabalho tenho tendência a repensar tudo de novo: os materiais, os intérpretes, os colaboradores. Quando repito, é porque para cada projecto singular aquele grupo de pessoas faz sentido. A repetição faz com que se alarguem as redes de cumplicidades e se gerem novas ligações entre as coisas. Crescemos todos juntos e, por momentos, tudo parece fazer sentido no caminho de uma construção ainda maior e mais global, mas pode não ser intencional e ser apenas a sensação e o valor de um projecto... Agora, existem alturas em que é gratificante trabalharmos com pessoas que nos conhecem e que já sabem prever o que não se disse, ou antecipar. É o que se passa, por exemplo, com a Sónia e a Elisabete: tenho com elas uma relação privilegiada, uma relação que foi amadurecendo, quer do ponto de vista profissional, quer do ponto de vista pessoal. Com o Alexandre, a colaboração iniciou-se em 1998 com Vooum e escolhi-o porque conhecia o seu trabalho em âmbitos muito diferentes dos do espectáculo (aliás, ele teria feito em conjunto com outro músico, e há muitos anos, apenas um trabalho para dança). Interessava-me o seu tipo de sonoridade e de musicalidade e achei que seria perfeito para o projecto que eu tinha em mente e que se ligava a ambientes urbanos e de viagem. E com este espectáculo, estreia de trabalho conjunto, percebi que haveria ainda muito por explorar, não lhe vi o fim... O Daniel Blaufuks entrou neste mesmo projecto e também pesquisei sobre o seu trabalho e foi igualmente uma colaboração que, para além de excelente, me abriu de imediato novas ideias e questões para outros projectos. Voltou-se a repetir em No Fly Zone e só não aconteceu mais vezes por impossibilidades de calendário de trabalho.
No texto de apresentação de Vaga, refere, a dado passo: “A compatibilidade, por diversas vezes testada, do movimento e da música serve sobretudo para a criação de um espaço concreto de circulação, de contínuos, mas também de um espaço onde se faz dançar e se faz ouvir a interrupção e a suspensão do gesto e do som”. Como é que se tem vindo a desenrolar este processo com o Alexandre Soares?
O que eu quero dizer com isso é que, para além da minha dança e da música do Alexandre construírem, a posteriori, um lugar e um ambiente com determinadas características estéticas, a dança e a música resultam muitas vezes dos mesmos pressupostos. Como era o caso de Vaga. Normalmente o resultado final dos diferentes trabalhos conjuntos, a dança e a música funcionam como objectos autónomos mas que juntos criam um universo coerente, mesmo quando concorrem entre si. A continuidade, a suspensão ou a interrupção não são apenas efeitos de suporte a qualquer coisa maior, são matéria dançada e musicada. Mas existe outra tendência no nosso trabalho, que é a de entrar numa variação infinita ou numa sequência de tal modo longa que se torna cada vez mais matérica e menos frásica. Daí que a interrupção ou a suspensão ganhem um valor especial na composição.
Gostava que desenvolvesse o conceito geral deste ciclo, e que nos dissesse de que forma é que esta multiplicidade de suportes (o cinema, a dança-no-palco, a performance, a instalação vídeo) se irá articular.
Este projecto, no seu global, tem como objecto performativo a exploração da paisagem inteligente ou o humano como paisagem. Falamos, portanto, de uma paisagem dinâmica de um corpo em constante transmutação, seja o corpo nos seus movimentos como deriva sobre uma narrativa (With drooping wings), seja o corpo nas suas deslocações mais puras e desinteressadas (Movimentantes). Do ponto de vista de um conceito, este projecto poderia ser pensado como um novo espaço ou como uma espécie de lugar digamos, pós-pátria. Ou seja, um lugar ficcional de figuras que não se sabe de onde surgem e que estão sempre em circulação. A metáfora do viajante que todos nós somos, mesmo quando não nos deslocamos. Neste projecto estão reunidas várias vertentes das artes que me interessam – a música, o cinema, as artes plásticas – e a sua articulação é evidentemente subjectiva, mas foi trabalhada e pensada para ser clara no que quer transmitir e fazer sentir. Espero que isso aconteça.
Uma das coreógrafas mais interessantes do panorama nacional de dança contemporânea, Né Barros regressa amanhã, quinta-feira, ao TeCA com mais uma proposta a não perder. Sobre "Dia Maior" já tive a oportunidade, à convite da própria para o TNSJ e por sugestão editorial para "O Comércio do Porto", de expressar por duas vezes a minha leitura sobre o projecto. Observei o espectáculo em dois contextos diferentes, a criatividade, ousadia e profundidade das questões Né Barros levanta continuam a seduzir-me profundamente e a cativar-me pela sua inteligência na abordagem do universo semiótico e relacional do corpo. Depois do desconcertante "Vaga", que para além de ter absorvido grande parte das referências cinematográficas, de Lynch a Cronenberg, que povoam o meu imaginário, levantou-me uma série de questões tão pertinentes quanto inquietantes sobre as extensões autónomas da memória genética do corpo, com o uso, inteligente, das "mala-monitor" e com um conjunto de construções coreográficas cativantes e coerentes, em "Dia Maior" a experimentação, o abandono viagiado, a fuga para as sombras do tempo produziram um espectáculo mais orgânico, conduzindo a problemática das relações inter/corporais, espacio/temporais e de comunicabilidade/identidade por territórios provocantes, sedutores e inquietantes. Na sua quinta colaboraçã com N+e Barros, Alexandre Soares sobe ao palco, contagiando, desde o nascimento até à morte, o mais recente trabalho de Né. Apesar de manter a referências que lhe são quase genéticas da sétimas arte, tão bem expressas na obras de Canijo, o guitarrista dos TTT alimenta movimentos de ruptura com o preconcebido, protagonizando sobreconstruções arrepiantes, surpreendendo pelo dinamismo e criatividade do "live act" apontado em várias direcções do abstrato, outro território que me atrai bastante. "Dia Maior" resulta de vários dias menores em perpétua reconstrução, interiores/exteriores, plurais e unos, dilatados e comprimidos, em micro-narrativas do acordar solitário, do conflito do corpo enquanto objecto de um desejo, símbolo, emissor de signos, à epifania do Outro, enquanto possibilidade última de salvação na descoberta da identidade na comunicação, na transcendência, na metafisicalidade. Proposta a não perder, "Dia Maior" inaugura a amanhã a programação 2005 do TeCA. Dança contemporânea no seu melhor nível no Teatro Carlos Alberto, do Porto, até sábado às 21h30.
We observe first an open and already prepared scene, whose elements indicate that the plot will occur in several spaces of the same scene, suggesting different dimensions and stages according to how far the audience and the other spaces are. Still we understand from the first words we hear that there is a desire of territory that does not depend of clear identification, having subjected the actions to an aware arbitrariness. Throughout the choreography we observe how the creations contribute for the creation of a discreet atmosphere which is never forced to a clarification or which is never looking for a single meaning.
Segundo Plano flows from the orchestrated encounter between sounds, movements, light and bodies being supported by a network of free bonds. The “occurrence and converging stages” build a surreptitious dramaturgy which seeks to escape the obvious and the “radical fragmentation”. Thus, perhaps it would be more accurate to name this discrete landscape a procedure of illusions, which together with “hierarchy in the perception and meaning construction” produces changes in what we observe, yet still can balance these elements never allowing the audience to feel lost.
The choreographer is orchestrating what seems vague, rare and unattainable, having pleasure pulling the threads of possible narratives, shadows of characters and strings of ideas without ever searching, and well might I add, and without ever proposing a meaning. There are sounds that start on stage and are prolonged to the outside. There are chorographical sentences that move from one performer to the other without losing its nature and there are light games which open new areas leaving for the imagination what lies in the edges.
By giving the four performers (Bruno Teixeira, Joana Castro, Pedro Rosa and Sónia Cunha) an individual space that they must be able to fill in through the rarity of intentions, Né Barros gives them a space to explore the dramaturgy and their own body – white as a canvas, one could say, given the multiple potential bonds. It is mainly Joana Castro e Pedro Rosa who, in the brightness of their performances, best deal with the density of this play with the right angle in the movement ambition, intelligence in the narrative time management and richness by the subtleties of a construction that knows how to make the best of the tensions that stem from the different sources of inspiration. One of those sources is the soundtrack by Alexandre Soares, a fifth body also choreographed and which through sound – multiple and convergent – shapes atmospheres and spaces.
It is in the freedom of bonds between the “ambiguity areas” and in the less than obvious atmosphere set in the scene that Segundo Plano overcomes a dreamlike dimension, shuffles “the order of importance of things” and materialises in a sensitive shuttle, weaving a multiple and unique portrait of independent images of which Né Barros manages with a moving sensibility.
Poderíamos chamar a With Drooping Wings, uma ópera da heterogeneidade. Recuperando o mito clássico de Dido e Eneias, Né Barros persiste na procura das possibilidades do corpo contingente, destituído de identidade social, centrado na exterioridade e cingido ao transitório. Desta vez, porém, a coreógrafa opõe à horizontalidade dum magma de intensidades que atravessa os corpos e os devolve a uma unidade do múltiplo, um conjunto de imagens verticais herdadas da tradição iconográfica ocidental. Estas imagens oferecem-se-nos como forças de ancoragem cultural, bolsas de densidade histórica ou reservas de sentido, capazes de interferir no processo de desestruturação para que Dido e Eneias, maquínicos e pulsionais, concorrem.

A narrativa de Eneida, poema de propaganda encomendado pelo imperador romano César Octaviano Augusto a Virgílio, no ano 19 a.C. – onde se inscreve a tragédia de Dido e Eneias –, parte do episódio da destruição da cidade de Tróia e termina no da fundação de uma nova cidade no Lácio que, na ordem mitológica, viria a ser Roma. A Eneida de Virgílio assenta num ciclo de metamorfoses, de apagamentos e ressurgimentos, que nos coloca antes de mais, perante o problema da génese das imagens e da sua história.
O encontro entre Dido e Eneias, que se reconhecem na condição partilhada de exilados (ela, também chamada de Elisa, é uma princesa de Tiro foragida do seu país para a Líbia, onde funda Cartago; ele, um príncipe troiano desterrado depois do saque e incêndio da sua cidade) nasce do jogo da redescoberta de um corpo de imagens, entre dois desapossados do património das representações maternas. Eneias emociona-se com os frescos no Templo de Hera, que reproduzem cenas da Guerra de Tróia, ocorrida havia sete anos. Dido, por sua vez, é conquistada pelas histórias de Eneias, que relatam a ruína de Tróia e a sua viagem através da Trácia, de Creta, de Épiro e da Sicília até Cartago.
O exercício da tradução histórica, fonte original das imagens e alucinação moderada, modesta, partilhada e “tocada pelo real” (como Roland Barthes se refere à fotografia na sua dupla natureza de testemunho e ausência) é o primeiro prazer descoberto pelos amantes. A vivência conjunta das imagens da guerra – experiência íntima e política, isto é, privada e pública a um só tempo – inaugura um acelerado processo de desindividuação. Os amantes são tomados de uma febre erótica, que os faz distanciarem-se do lugar social que ocupam e transfigurarem o devir histórico que lhes cabe: Dido desresponsabiliza-se progressivamente pela governação de Cartago (renúncia que culminará no seu suicídio) e Eneias abandona a missão de fundar Roma. A matéria dá lugar à energia em livre circulação. Dido e Eneias transformam-se em corpos sem órgãos, ou seja, como Gilles Deleuze e Felix Guattari definiram, um campo de imanência libidinal ou um plano de consistência específico do desejo enquanto mecanismo de produção, sem referência a instâncias exteriores.
Partindo da declarada guerra aos órgãos por Antonin Artaud, o corpo sem órgãos em Deleuze e Guattari (CsO, na irónica fórmula dos seus autores) não é uma noção, mas um programa, uma prática ou um conjunto de práticas, conforme explanado em Mille Plateaux/Capitalisme et Schizophrénie 2. Opondo-se à interpretação, ao fantasma, ao subjectivismo e à semiotização do sujeito como garante contra a ambiguidade, a ambivalência e a depravação, o corpo sem órgãos é um corpo votado à desestruturação do eu e da imagem com os quais me identifico. Dido e Eneias passam a constituir um corpo de fluxos não estigmatizado numa representação, organizado em estádios (os plateaux) ou fragmentos de imanência, onde a anarquia e a unidade, por intermédio da experiência, são uma e a mesma coisa, na unidade do múltiplo. « Remplacez l’amnèse par l’oubli, l’interpretation par l’experimentation. Trouvez votre corps sans organes, sachez le faire, c’est question de vie ou de mort, de jeunesse ou de veillessse, de tristesse et de gaieté. Et c’est là que tout se joue. »

Em With Drooping Wings de Né Barros, pressinto uma vontade de actualização e radicalização do problema central do mito de Dido e Eneias : se é no exercício das imagens (entre o óptico e o mnemónico) que os amantes se reconhecem, para que ordem de representação é reencaminhada a história das imagens, quando os amantes se tornam puras máquinas desejantes ? O conflito é polarizado entre o corpo-máquina (e a horizontalidade do seu funcionamento ou, inversamente, duma liberdade desregulamentada) e a iconografia (e a verticalidade em que presentifica as figurações).
Donde, a progressão narrativa – aqui servida pela ópera Dido e Eneias de Henry Purcell – se desenvolver segundo uma dupla pontuação, ora na restauração gradual de um território multitudinário e anómico (em que os corpos vagam, acumulados no esgotamento maquínico e na ausência duma organização colectiva), ora na repetida surpresa pela irrupção da epifania, em que identificamos a cada vez um momento da história das imagens (e particularmente, da história da pintura), que se forma com a mesma rapidez com que imediatamente desaparece. Nestes episódios de convergência, sumária mas exaltada, reconhecemos, inadvertidamente, as três graças de A Primavera de Botticelli, O Nascimento do Homem de Miguel Ângelo, os cortejos auroreais de Apolo nalguma pintura barroca italiana, um Narciso à procura do próprio reflexo, nas margens do espaço de representação, A Jangada da Medusa de Géricault, as máscaras africanas e o seu ascendente sobre o cubismo e a arte bruta.

Num espaço habitado por corpos tendencialmente sem órgãos, como os de With Drooping Wings, cruzados pela circulação das intensidades que os incitam, através de novas linhas de fuga, à permanente desterritorialização (esses corpos não reinterpretam o espaço mas são violentamente transformados pelo movimento de o atravessarem), aquelas epifanias apresentam-se como reservas particulares de significado e de interpretação, conservadas, mais não seja, como aconselhavam Deleuze e Guattari, para as opor ao próprio sistema em desenvolvimento. Na diluição da categoria do eu, com a consequente perda do lugar de enunciação, assiste-se à emergência dos princípios de indexação ou dispositivos de indicialidade, como o relampejo de imagens – ou versões parciais de imagens – que integram a consciência do nosso património, a um só tempo, individual e cultural.
Dido e Eneias deixam de ser a rainha de Cartago e o príncipe troiano guiado pelo projecto de fundar uma nova cidade em Itália, esquecem as imagens que os aproximaram para abraçarem o mecanismo de reterritorialização que é o prazer. As micro-percepções e os micro-movimentos substituem o mundo do sujeito, as singularidades tomam o lugar das identidades e os corpos sem órgãos celebram a desarticulação (ou a coexistência de uma infinidade de articulações), a experiência e o nomadismo (actividade de desubjectivação, que pode concluir-se na viagem imóvel dos passeios de Dido e Eneias pela cidade de Cartago) como modos de devolução da vida à vida e do corpo à experienciação.

Só quando Zeus decide, finalmente, enviar Hermes numa visita a Eneias, para lhe recordar o seu destino histórico – o de fundar Roma, substituta de Tróia –, os amantes regressam a uma rígida estratificação e ao risco fascista, demente ou suicida que ela comporta na sua organização, significado e subjectivação.
Eneias decide retomar a viagem interrompida e a sua missão, encerrando-se num corpo totalitário e expansionista. Dido, desesperada, tenta convencer o troiano a esperar por ventos favoráveis para partir com a sua frota e permitir-lhe, a ela, um tempo de suspensão de modo a viver menos violentamente a nova territorialização (« Peço um tempo morto, descanso e trégua para a minha loucura, enquanto o meu destino me ensina a suportar a dor da derrota. Este é o último favor que peço. »). Vendo a demanda recusada e o seu amor frustado, Dido torna-se, inicialmente, um corpo canceroso. Isto é, regressa à consciência dos seus órgãos, a um CsO do organismo, um tecido canceroso do significado, que bloqueia a circulação dos signos e impede a transição para um outro CsO. Ao mesmo tempo, experimenta uma espécie de alucinação radical que é tanto uma perturbação da percepção da exterioridade (a partir de então, a água sagrada aparece-lhe turva, o vinho converte-se em sangue, ouve a voz do seu marido falecido, sonha-se a caminhar por trilhos sem fim em paisagens desoladas) como uma percepção atormentada dos órgãos internos do corpo, numa alucinação endoscópica, ao ver-se consumida pela dor.
Dido, arrebatada pela violenta desterritorialização, procura, finalmente, produzir um corpo vazio, por meio de uma destruição simbólica total. Desenvencilha-se de todas as pequenas reservas de significado que resistiram ao colapso da sua relação com Eneias e pede que lhe acendam uma pira funerária, onde coloca as armas e todos os vestígios do amante, incluindo a cama onde haviam dormido juntos. Enquanto o fogo arde, Dido deixa-se cair sobre a espada de Eneias, suicidando-se. Os corpos de Dido e Eneias transformam-se em duplos (ou caricaturas) dum CsO. Cristalizam. Morrem.

No final de With Drooping Wings, em que gradualmente o movimento se rarefaz e Dido nos surge morta na posição vertical (como ser que conserva, malgré tout, uma reserva cultural), um enorme ovóide invade o espaço cénico, imagem derradeira que se liga à ideia da morfogénese (como os ovóides com que Manuel Casimiro transtorna determinadas imagens da história da arte, subtraídas à trama da nossa matriz cultural), mas também, ao ovo deleuziano, núcleo da intensidade no seu mais alto grau de pureza, a intensidade zero, o spatio (em vez da extensio). O ovo é, para Deleuze, o ponto de fuga fundamental entre a ciência e o mito, entre a biologia e a cosmologia e, em processo de produção incessante, não se localiza antes nem depois das ocorrências – como na linearidade da análise psicanalítica – mas é uma subtil contemporaneidade germinal entre o adulto e a criança. O ovo exclui toda a hipótese de projecção e de regressão e existe– como o universo das imagens (as representáveis e as intuídas da micro e da macroscopia) – numa involução, que não promete a redenção do progresso nem lamenta os paraísos perdidos, mas é invariavelmente criativa e contemporânea.

Se propomos a releitura do mito de Dido e Eneias sob a perspectiva das filosofias da diferença – e julgo que a proposta de With Drooping Wings vai nesse sentido –, é porque mesmo que permanecendo a Eneida uma celebração do poder imperial de Roma, ver em Dido a Cleópatra e em Eneias o Marco António que desafiam César (e por ele são derrotados na batalha marítima de Áccio) ou tomar Dido por metonímia do Médio Oriente e do Norte de África, últimos domínios conquistados pelos romanos, é hoje um exercício de pouca valia. Mais urgente será compreender o projecto de substituição das crenças pelas imagens (que unem os amantes numa consciência histórica e numa voragem criativa), que faz de Dido e Eneias elementos de um mesmo processo de heterogeneidade, que só fracassa ao não conseguir reorientar o prazer para a sua expressão mais complexa – o plano de imanência de intensidade zero – e se extingue quando os corpos capitulam, pesados, à caricatura identitária da representação social.
Nessa altura, o corpo era ainda um destino para onde convergiam todas as memórias, numa atitude vagamente doce, inteiramente onírica.

Na escrita coreográfica de Né Barros o corpo é sempre evocado como um território a um tempo estrangeiro e íntimo, porque repleto de ritmos e gestos que nos são únicos. É um corpo metafísico que contagia o espectador pelo desejo do inconsciente e do onírico.
Em, “Solistas” reencontramo-nos uma vez mais com intérpretes em ausência de limites que, constantemente, se recriam em novas personagens, deixando-se surpreender com as possibilidades do seu próprio corpo. Aprendem a sentir. Aprendem a falar.
Né Barros regressa, neste trabalho, às imagens fortes e metafóricas que tão bem a caracterizam, mas fá-lo de uma forma pura, com uma contenção limite, sem um excesso ou um gesto desnecessário. O palco respira sem receio do vazio e ao espectador é feito o convite de entrar nesta paisagem por vezes lúdica e infantil, outras vezes solitária e em desalento. Os intérpretes/personagens têm um comportamento cúmplice entre si, numa empatia que, por vezes, se revela desconcertante.
Os “Solistas” colocam-nos a problemática do limite do gesto e do corpo, assumindo um discurso de subjectividade intimista em que o iminente contacto com o outro assume a sua forma mais primária, ao fazer reviver experiências primeiras de gratificação e afectos. Assistimos ao questionar dos limites que fundam os discursos da subjectividade, em que o universo de cada um se conjuga em sons e aromas com uma verdade sem fronteiras que é um (in)consciente colectivo. É um universo plural e múltiplo que tem como paradigma a relação entre o individual e o colectivo. Este trabalho encontra-se sob o signo do fascínio da origem em que, constantemente, se questiona a relação entre o pensamento, o sentimento e o corpo, levando ao limite a pesquisa do momento originário desta relação.

Né Barros na introdução do seu novo espetáculo de dança contemporânea, Estrangeiros (2012), estreado ontem à noite em Guimarães (CEC 2012), fala-nos da inspiração em O Estrangeiro (1942) um dos livros mais importantes de Camus, aonde ele espelha toda a essência da sua visão do mundo e da vida, definida pelos críticos como "a filosofia do absurdo".O estrangeiro de Camus movimenta-se por entre o mundo de forma inconsequente, sem rumo nem sentido.

Transborda da prosa a sensação de total estranheza face ao quotidiano, ao circundante e ao chamado real. E é isso que vemos na nova obra de Né Barros, uma demonstração contínua do absurdo do movimento do corpo, da total estranheza que percorre os movimentos menos familiares, aqui fortemente explorados. Os atores desdobram-se, transmutam-se, encolhem-se, esticam-se, em poses invulgares que despertam os nossos sentidos, e nos perturbam, tudo isto a movimentos rítmicos ainda menos comuns, numa espécie de staccatos do movimento corporal.

[...] O espectáculo abre com seis pessoas em cima do palco, cinco guitarras e um baixo, tocando poderosamente num ritmo hard-rock, os intérpretes (Bruno Senune, Flávio Rodrigues, Joana Castro e Pedro Rosa) abandonam as guitarras, mas em palco permanecem ao longo de toda a performance dois músicos (Alexandre Soares e Jorge Queijo). [...]

Por detrás dos músicos corre um panorama que tempos a tempos se ilumina e no qual se projectam traços e riscos interactivos sobre um fundo negro (João Martinho), que vão sofrendo distorções na relação com os performers, ora pela via do movimento ora pela via da voz e choro.

Ao longo do espétaculo as cordas vão transmutando-se evoluindo para níveis mais pesados a roçar o trash metal, e a fazer lembrar Metallica dos anos 80, passando depois por momentos de estranheza psicadélica a evocar a ficção científica dos anos 70, progredindo para momentos da mais pura ambiance electrónica, e elevando-se no final sob a melodiosa e fina sonoridade de uma guitarra portuguesa. Tudo isto acompanhado pela projecção visual de formas que seguem interactivamente o que se passa em cena, sempre tudo totalmente envolvido por um desenho de luzes perfeito (Alexandre Vieira). [...] Toda esta formalidade técnico-artistica é servida com excelentes performances de dança do absurdo, fazendo deste espetáculo um momento poderoso, a nível sensorial, capaz de nos envolver e transportar numa jornada existencial.
 

A startlingly effective drone runs through the new collaboration between Galician artist Xoán-Xil López and the trio Haarvöl (Fernando José Pereira, João Faria, and Rui Manuel Vieira) on the three stilling pieces on Unwritten Rules of a Ceaseless Journey. In 2019 to date, this is by far, my favorite record. It’s a bit breathtaking and hard to write about as I listen. The track The Pulsating Waves (Reality) calls for more of a lateral experience since the mediating tones are as sublime as subliminal. These works touch on three nearly intangible states of mind: utopia, reality and trauma – in that order. The first two really find a perfect balance even while referencing impossible texts such as The Utopian Function of Art and Literature (1964), and making references to “cataclysms of industry, rampant misery, naked exploitation, the ecological apocalypse“. Oh, such is the everyday.

 

Though their collaboration juxtaposes the sense of euphoria that comes with hovering drones by imposing the concept of all variants of time: past, present, and future. This work documents pieces composed for dance (Ballet Teatro‘s Revoluções) by choreographer Né Barros. Field recordings abridge electronics somewhere in the middle and the pairing of this quartet of creatives is genius. And by the end of the second part it’s as though we’ve been through some sort of industrial cleansing.

As Don’t Look Back, Run (Trauma) opens somewhere in the darkened orchestral corners, the setting sort of falls to the depths of the soundstage as if falling away into space. The bare bones percussion is uniquely minimal and the waveform is set back, drifting moderately. About one-third through you hear what sounds like strings calling out, wavering a bit as if sending an encoded distress signal. López has taken this amalgamated tale to a secret place while upending the tension with the harmonics of Haarvöl. While a rotor seems to be at play the bereft refrain continues through until nearly the end, and after fading from earshot the listener is left with something pressurized that seems to be sinking away into some sort of watery depths. You can easily imagine bodies (dancers) undulating into darkness.

ON IN toneshift.net

Na festa que assinalou a ocupação do Coliseu do Porto pelo Balleteatro, a Né Barros, o Alexandre Soares e o Flávio Rodrigues celebraram a sua adoração ao sol com este espectáculo (estreado no Constantino Nery, no festival Cena Contemporânea). E eu escrevi algumas palavras de adoração aos artistas:

SOBRE UM SOL SUBTERRÂNEO
Entrar no coliseu e corrê-lo como se fosse uma criança, como se fosse um das dezenas de crianças que circulavam pelo espaço nesse dia de inauguração das actividades do Balleteatro ali, entrar naquele salão onde antes uma orquestra tocava e os pares dançavam mais ou menos agarradinhos, imaginar uma versão de O Baile, de Ettore Scola, entrar e encontrar um guitarrista e um bailarino coberto com um manto dourado, ou quase dourado, de tanto brilhar por dentro, sentar-me no chão e esperar — tudo isso preparou a experiência que estava para vir, o ato de assistir a esta criação da coreógrafa Né Barros, com o músico Alexandre Soares e o performer Flávio Rodrigues, uma espécie de prova, a demonstração de existência de um Sol Subterrâneo.

Depois, leria no programa que o título do espectáculo se deve a um poema de Luís Miguel Nava:
O sol é subterrâneo, aquele a que eu
me quero hoje estender é o do meu espírito, é preciso
cavar bem fundo até o fazer surgir.

Nesse momento, já a minha experiência se havia constituído de tal forma que as palavras do poema pareciam traduzir o que acontecera. Pois o som e o movimento naquele espaço tinham-me posto em comunhão com os performers através da partilha desse sol invisível, escondido, alquímico, de cada um, e o que eu vira fora dois artistas arrancando da terra com as mãos a própria vida, luz em todas as formas. No programa lia-se ainda que “este projeto coreográfico e musical encontra a sua ordem e desordem entre o céu aberto e o grito mais íntimo e profundo”. Foi então que fui convertido. Estas palavras descreviam o sucedido em mim. Acabara de participar numa cerimónia de iniciação a um culto sagrado da física dos corpos celestes e dos elementos subatómicos. Órfãos do xamanismo, os contemporâneos têm que reinventar esse contacto original com o sol interior, e reaprender a alquimia para descobrir a pedra filosofal que é cada um de nós e, ao mesmo tempo, todos nós somos. O Coliseu já me parecia um templo das ciências do oculto, na viragem do séc. XIX para o XX, em que dança, bombismo e astrologia se intersectavam doidamente.

O misticismo tem limites. A minha base é material. Os dois performers mostraram não só o repertório vasto que possuem, e o domínio total que têm das respectivas linguagens artísticas, mas também o que não têm e o que não sabem ainda. Explico-me: explorando as suas capacidades técnicas para ir mais além, além da execução perfeita, com o fim de descobrir outras coisas, abriram o campo de possibilidades da forma musical e e da forma coreográfica, permitindo aqui e ali vislumbres do que até então era invisível na experiência do mundo. Falo da experiência concreta do mundo, tanto dos corpos em movimento nas ruas e nas instituições — colégios, cafés, shopping center — que se vêem nos media — cinema, TV e internet — como nos sons e ruídos mais ou menos espontâneos, mais ou menos artificiais, que povoam o nosso dia-a-dia, os nossos sonhos, o nosso imaginário partilhado. O espectáculo fez-se percorrendo todas as dimensões possíveis do corpo e dos instrumentos, todas as imagens do corpo masculino em esforço e propulsão, do desporto à luta, do sexo à dança, e todo o espectro auditivo, acordes, barulhos, notas cristalinas, com uma banda sonora que saía dessa função e categoria para se alçar ao trabalho de interpretação e contracena — quanto mais não seja porque ali estava também um compositor e intérprete, em diálogo com a cena e o outro intérprete. E foi ao percorrer esse caminho, ao gerar esse fluxo, que se viu emergir o campo quântico, onde fulge o tal sol subterrâneo, e onde o poema coreográfico se junta ao poema original.

A guitarra em distorção como tensão e alívio, a corrida, o salto, a repetição, enfim, inúmeros outros aspectos desta criação, são como partículas elementares da vitalidade em arte, articulações não-verbais, postas no mesmo lugar da voz, essa coisa que já não é corpo e ainda não é fala (como coloca o antropólogo Joaquim Pais de Brito), elementos cuja combinação faz irromper em chamas o que até então eram apenas brasas desse fogo interior antigo, que nos consome, do qual nos afastamos vezes sem conta quando nos mortificamos, fogo que ao arder em euforia, se nos reduz à matéria-prima, também nos faz regressar, uma e outra vez, das cinzas, lavrando com destemor.

No próximo dia 23 de outubro, no Cine-teatro de Torres Vedras, a coreógrafa Né Barros apresenta CO:LATERAL, uma peça produzida pelo Balleteatro em que a luz impregna o corpo da intérprete Sónia Cunha em ritmos digitais concebidos por João Martinho Moura.

O Balleteatro – dirigido por Né Barros e por Isabel Barros - tem na História da dança contemporânea em Portugal um lugar incontornável, permanente e persistente, não apenas como espaço de criação e de miscigenação de linguagens, mas também enquanto lugar de formação. Desde 1983, data da sua fundação, mas sobretudo após a sua reestruturação nos anos 90, há que reconhecer o impacto assinalável na formação dos artistas da dança e da performance sobretudo no norte do país. Trata-se pois de uma verdadeira incubadora em
artes performativas, versátil e atuante.

Neste contexto, Né Barros tem uma longa e persistente carreira na exploração da linguagem da dança, trabalhando-a a partir dos corpos, das suas imensas possibilidades de movimento, mas também combinando-a com linguagens de outras disciplinas, como o teatro, a música, as artes plásticas e o cinema, e finalmente ensaiando novas ferramentas. Para tanto, no processo criativo, Né Barros pode partir e combinar referências literárias, plásticas, científicas ou filosóficas e colaborações de outros criadores.

As duas peças de que aqui se dão notícia ilustram o trabalho exploratório da coreógrafa. CO:LATERAL é, conforme já foi referido, uma proposta que, graça sàs novas tecnologias digitais e à manipulação de software de luz e vídeo para palco, proporciona a imersão do espectador em fluxos de pontos, linhas e formas. Nesta peça, a referência ao cisne, figura emblemática do ballet clássico, transmuta-se em fotões trémulos e breves. Com efeito, tratando-se de um projecto em formato mutável (capaz de variar em cada apresentação), a versão programada para o teatro-cine de Torres Vedras evoca momentos da morte do cisne, imerso num espaço imaterial de luz e projeção.

A outra peça de que aqui se dá notícia é IO, estreada no dia Mundial da Música, 1 de outubro, e programada para ser apresentada a 4 de dezembro no âmbito do 20o aniversário do festival Dans6T, em Tarbes, França. Trata-se de um trabalho que nas palavras da coreógrafa se move entre “Paisagens, Máquinas e Animais”. O título IO transporta-nos para uma das grandes luas de Júpiter, agenciando simultaneamente uma gravidade, uma temperatura e um magnetismo não terrestres. Evidentemente que, sendo a peça feita sob o efeito da nossa gravidade, o processo de agenciamento resulta de artifícios gerados pela combinação de sonoridades (compostas por José Alberto Gomes), do dispositivo cénico (de Flávio Rodrigues e Né Barros) e dos movimentos dos intérpretes Beatriz Valentim e Bruno Senune. Da simbiose desses elementos resulta uma experiência que transporta o espetador para outros mundos sem sair do mesmo. O extremo vulcanismo de IO, visto pelos olhos dos criadores, reflete-se num triângulo de arestas efémeras, duplicado num reflexo que desafia a divisão entre o que está acima e o que está abaixo. Este espaço, repleto de sons magnéticos, contém fluxos, capazes de perfurar arestas e desvanecer formas. Nesta atmosfera, o início da peça mostra como o simples ato de abrir os olhos ganha uma intensidade perturbante. Então, todos os gestos dos corpos, amplificados e dialogantes pelas sonoridades permanentes (como permanente seria a presença tutelar de Júpiter), revelam-se zonas de intensidade.

in Jornal de Letras, Artes e Ideias
20-10-2021

"Chorégraphe, danseuse et cofondatrice du Balleteatro de Porto, Né Barros signe un ouvrage singulier. IO est le premier volet d'une série née en 2019 intitulée Paysages, Machines, Animaux. 

Sur le sol du plateau un parfait triangle de poudre blanche compose une scénographie extrêmement pure. C’est tout d’abord dans cet espace que Beatriz Valentim et Bruno Senune interprètent une chorégraphie dont les corps expriment un coté sauvage et animal. Accompagnés en direct par le saxophoniste Henrique Portovedo, les deux excellents danseurs se lancent dans une joute où la femme évoque son indépendance et sa puissance. Le son du saxo baryton apporte une sublime voix supplémentaire à cette dualité.

Une danse très souple, un jeu des corps parfaitement maitrisé alors, qu’en s’éloignant du triangle, les interprètes étalent cette étrange poudre. En décollant le scotch qui définissait la figure géométrique, Beatriz Valentim l’élève au dessus d’elle et fait apparaitre une parfaite pyramide.

Une pièce étrange, envoutante, très esthétique qui interroge sur le rapport homme/femme avec une note très personnelle de la chorégraphe portugaise.

Sophie Lesort / Danser Canal Historique

JORGE GONÇALVES*
Atravessar o corpo com exterioridades, com mundos por vir. Redimensionar o passo humano ao estranhamento e encantamento, à volúpia e vulnerabilidade, à indeterminação e perplexidade. A série Paisagens, Máquinas, Animais, de Né Barros, desdobra-se e multiplica-se em IO (2019) e Neve (2022), e em breve, Quinta-feira à Tarde (2023). Com escritas coreográficas distintas na sua leitura axial, a íngreme verticalidade espaciotemporal em IO contrasta com a transitória horizontalidade em Neve. Em ambas as peças, a plasticidade incorporada pelos intérpretes é de uma performance exímia e dilacerada, de fluxos de desencontros e fragilidades, de voos rasantes e errantes.
Em Neve, percorre-se uma sucessão de dimensões arquitetónicas e afetivas intermediadas por processos de transdução através das diversas colaborações multidisciplinares de Né Barros. A mutabilidade do dispositivo cénico de FAHR 021.3, em conjunção com o desenho de luz de José Álvaro Correia, é de um minimalismo subtil e desmesurado, delimitando a máquina teatral a planos e recortes, como recurso infindável de evocação de espaços privados e públicos, ficcionais e abstratos, para diferentes escalas humanas e aberturas para o mundo. A composição musical de Carlos Guedes expõe-nos a ciclos de compressão e entropia, desmultiplicando-se por diferentes atmosferas e ritmos sonoros. Por vezes, são de uma absorção centrífuga, expandindo e sacralizando o dispositivo espacial a outras temporalidades, e noutras vezes, desampara-nos nas alucinantes respirações musicais e melódicas da flautista, que ocupa uma presença condutora de relevo, ora pela suspensão da transição entre paisagens, traçando possíveis percursos, ora na espacialização sonora de harmonias que expandem a elasticidade e afetação da conceção espacial. Nesta veiculação entre espaços, os corpos dos intérpretes desocupam-se para serem habitados em viagem numa incessante perseverança na efemeridade do gesto, num movimento de uma só direção, mas de múltiplos sentidos. Sem um olhar para trás, sem um reavaliar dos seus posicionamentos, estes corpos acionam e processam a sinergia do dispositivo cénico em diversas cartografias paisagísticas. O que é uma paisagem? Como é que a percecionámos e habitámos ao mesmo tempo? Como é que experiencialmente se constitui? Aqui, a prática discursiva de Né Barros questiona, desconcerta e indisciplina as percetibilidades do olhar, para voltar a ver o que não se vê como ainda não tínhamos visto, instigando a perceção como uma performance em si mesma.
Existe uma presença nómada nestes corpos, uma espécie de ostentação de compostos de vivências errantes e poéticas voláteis, em que estes evocam distintos territórios, provindos das inflexões geradas pelas curvas de interseção entre música, dispositivo cénico e dança. Os intérpretes, Beatriz Valentim, Bruno Senune e Afonso Cunha, em deslocação e deslocados, desvendam a extensibilidade dos espaços com voos rasantes à cristalização do que é reconhecível. Desassossegados e resilientes, eles mantêm-se porosos como a neve, absorvem, mas não alteram forma nem estado físico com o que lhes é exterior, eles são essa exterioridade e sintetizam eloquentemente as suas próprias experiências, evocando memórias reminiscentes de outras temporalidades, transformando-as em imagens não apaziguadas e intermitentes. Em deslocamento, é observável na performance dos intérpretes um delírio com o arquivo experiencial dos seus corpos. Estes não petrificam a sua gestualidade, mas transbordam em si movimento e imagens, ou seja, reiteram exaltadamente a sua experiência difrativa e configuram a constituição dinâmica de uma paisagem. Nos planos fílmicos de Filipe Martins presencia-se a excessividade destes corpos na transferência para o real ficcionado. Eles são absorvidos como aberturas para horizontes sensíveis e restituídos pelas arestas em que o íntimo encontra a paisagem, o exterior desacelera a viagem e a memória resiste ao teatro. Neve estende-se nesta transitoriedade múltipla de imagens em movimento, em que, com a conceção e implementação de um dispositivo cénico transmutável, a escrita coreográfica propõe-se a uma reversão do ponto de fuga da paisagem, como se o olhar viesse de longe para perto, numa vertigem invertida, expandindo a sensação de quase-paisagem numa duração de algo por vir.
A série Paisagens, Máquinas, Animais iniciou-se com IO, peça estreada em 2019 no Coliseu do Porto e que mantém vários pontos de contacto com Neve. No entanto, confere toda uma outra abertura a esta série, em que os corpos como paisagem se enunciam-se nomeadamente como carnais, disfuncionais e mitológicos. Em IO, o dispositivo cénico integra a audiência em laterais opostas, e os intérpretes encontram-se permanentemente em palco, sem entradas nem saídas, sitiados no espaço cénico e propondo uma leitura da peça na sua verticalidade, estratificada pelas diferentes temporalidades, que nos afundam quando o Animal invoca o corpo e nos elevam quando a Máquina invade o corpo. Tal como em Neve, os intérpretes localizam-se em trânsito, indeterminados e ininterruptos, mas em IO as linhas de força da escrita coreográfica são centrípetas e intensificam o magnetismo da atração repulsiva entre os dois corpos. Estes quando se encontram não se alinham, o sentido da gestualidade de cada um não encontra o seu fim no outro, desarticula-se. Esta incomunicabilidade no apelo do corpo à Máquina e ao Animal, entre Beatriz Valentim e Bruno Senune, oscila persistentemente entre qualidades sensualmente brutas e primitivas, e em paralelo, desprendidas e empáticas. A composição musical de José Alberto Gomes mitifica estas propriedades corpóreas através da manipulação tímbrica de um saxofone barítono, e conduz os dois intérpretes numa deriva hipnótica e propulsora dos índices que tanto nos remetem para um especulativo futuro de ficção tecnológica, como para um passado ancestral comum. E é na sobreposição destas duas temporalidades que o dispositivo cénico de Né Barros e Flávio Rodrigues é concebido, constituindo-se por geometrias e matérias brutas, que perfazendo triângulos que erodem com o tempo, linhas vibrantes e outras configurações relacionais entre os corpos e o exterior. Ao longo da peça, os corpos acumulam nas suas peles os traços do desgaste e da iteração com os elementos cénicos, aculturam-se pela permanência nesse espaço a partir de gestos que são vestígios de outras temporalidades. O que inicialmente era um lugar, dois corpos verticais dentro de um triângulo, no fim passa a ser paisagem, uma superfície de fluxos de transferência entre lugar e corpo, experiência e memória, perceção e dança.
A multidisciplinariedade dos dispositivos coreográficos, que Né Barros estrutura para as suas vertiginosas e estonteantes paisagens desta série, é incrivelmente complexa e diagramática, de uma obsessão apaixonante pela dança como potência, e privilegia, sobretudo, um lugar emancipatório ao espectador, convocando-o a reivindicar a sua experiência sensível e política num plano aberto, num espaço de perceção e pensamento de um estar no mundo. A abertura, instabilidade, fragilidade e brutalidade com que a performatividade da sua escrita coreográfica se torna visível reside, aqui, no paradoxo do excesso ser o seu interior, em que o corpo se expande e desmultiplica como uma superfície difrativa das suas exterioridades.

* Curador, professor e coreógrafo.

1. Em que ponto se encontra a palavra interpretação na evolução de um bailarino?
O âmbito da interpretação é, como sabemos, muito vasto e complexo. Tendemos a reduzi-lo, por vezes, às competências de execução associando-as a uma expressividade mais ou menos singular. No entanto, interpretar, em minha opinião, requer muito mais porque reclama a criação de um universo para aquele gesto, para aquele corpo dançante. Há como que uma microficção que se desenvolve e que se conecta com um conjunto de gestos, tornando indissociável o valor do gesto com a sua história. No fundo, gera-se uma memória específica com um dado fazer. Essa memória é o que permitirá resgatar esses gestos mesmo que seja muito tempo depois de os ter realizado. Para mim, este processo deve estar lá desde o primeiro momento em que se começa a trabalhar. Partir para uma improvisação ou para uma reescrita de material coreográfico, precisa de ser instalado, desde logo, um ambiente, um tom, uma força que guiará toda a performance.
Interpretar, neste âmbito, é compreender de uma outra forma o que nos é solicitado e transformar essa informação em algo íntimo e subjetivo.

2. Que qualidades deve ter um Bailarino/Intérprete?
Uma das qualidades que os coreógrafos apreciam é, sem dúvida, a disponibilidade. Estar aberto é estar atento e curioso, mas também em ceder na sua própria personalidade. Havia uma frase de um filósofo que gosto muito, Michel Serres, e que dizia que dançar é ceder o passo e o lugar. Ceder também na narrativa que criamos sobre nós próprios é fundamental nesse ato de interpretar. Tentar conquistar, não necessariamente um neutro, mas um estado límbico de poder tornar-se “outro”. Claro que ter a capacidade de dominar o corpo tecnicamente, poder usar o corpo de forma desafiante, não apenas virtuosamente, mas desafiar o corpo nos seus hábitos e costumes, é uma qualidade que aprecio também. Nunca procuro corpos com determinadas características definidas a priori, interessa-me mais o complexo do indivíduo em si. Mas poderia referir que rapidez de compreensão dos problemas que se vão estabelecendo no processo coreográfico é também algo que aprecio muito, em particular, se essa compreensão se materializa em qualquer coisa que me surpreende. Convém perceber que em função de cada poética, as qualidades que se procuram nos bailarinos serão diferentes.


3. O ato de interpretar uma peça de coreógrafos é subjetivo? Depende do método dos coreógrafos em que a peça é criada?
Tratando-se de arte, só poderemos abordar questões do ponto de vista não-positivista. A execução mais identificável pode ser aferida com alguma precisão a partir de desenho do corpo, tipo de progressão ou dinâmicas. Contudo, essa execução é apenas uma camada da interpretação, não diria um primeiro patamar porque não há necessariamente um antes e um depois, um degrau exatamente antes de outro degrau. Por vezes, a evolução é feita de simultaneidades, por saltos ou por avanços e retrocessos. Dizia, a performance final, o estado amadurecido é um percurso individual e criativo. A discussão sobre interpretação na dança só poderá ser aproximativa.

4. Considera um Dançarino/Intérprete também um criador/compositor de movimento?
Creio que com as respostas anteriores se percebe que sim, considero um bailarino um criador. O grau com que o bailarino se revê como compositor de movimento é que pode variar. Há coreógrafos que trabalham mais com material que preferem transmitir de forma mais direta e, neste caso, o bailarino realiza esse material nos limites do seu potencial, recriando-o e adaptando-o, isso é inteligência criativa aplicada, é criação. Outros coreógrafos trabalham mesmo a partir de material que os bailarinos produzem em sucessivas improvisações, a produção de movimento como criação. Nestes casos, é absolutamente claro o papel de compositor de movimento que o bailarino tem, mesmo que o objeto final seja divergente do realizado. O coreógrafo tem uma matéria primordial que é o corpo em movimento, o corpo em gesto, esse corpo desde logo define os limites do percurso coreográfico ou mesmo o nexo da composição. É preciso perceber que a composição final é feita de diversos e múltiplos tipos de composição.

5. Como considera a sua evolução pessoal neste caminho como Bailarina/Intérprete e como se tem desenvolvido até hoje?
Considero que o meu trabalho como coreógrafa está intimamente ligado ao de bailarina. Apesar de ter optado muito cedo por estar sobretudo do lado de fora do palco, toda a minha experiência estética e coreográfica encontra um motor no meu corpo. Como processo de trabalho, realizo muitas improvisações a solo e analiso. Quando estou com os bailarinos, trabalho sobre um método que desenvolvi e que lhe chamo familiaridade de movimento onde a construção de uma memória visual e experiencial de movimento está em jogo.


6. Quando é que notou que a sua verdadeira autenticidade em movimento começou a florescer? Que ferramentas/estratégias, se as houver, usou para evoluir a partir deste ponto?
A minha principal pesquisa foi e é a de entender o que um corpo em dança pode no domínio do fazer e da representação do mundo. Sabemos que do ponto de vista do real, a parte documental pode encontrar noutras áreas artísticas outras abordagens mais eficazes, como no cinema, por exemplo. Na dança, esse lado documental-real vive sobretudo ao nível da interioridade do intérprete. Assim, a minha pesquisa levou-me à paisagem e à paisagem inteligente como noções fundamentais que aproximavam as realidades de real e do ficcional (dançante). Como um optimum de representação. A dança não tem território e daí a importância que encontrei na noção de paisagem como ligação do mundo real ao mundo da representação. Do ponto de vista mais pragmático, poderia dizer que depois de ter percebido qual era a minha zona preferencial de exploração do corpo dançante, do ponto de vista de técnicas de dança, tentei desenvolver métodos de trabalho que me permitissem multiplicar as possibilidades sobre um corpo no seu movimento, torná-lo um corpo mais imprevisível, e sobre o lugar do corpo na paisagem. A minha principal preocupação situava-se em encontrar o ambiente certo que justificasse aquele corpo naquele movimento. Criar um universo próprio e afim ao que se estava a produzir, era o meu foco principal. Claro que existem sempre histórias, memórias e experiências que criam o lugar onde nos iremos mover, mas a transformação dessas vivências gerará outros lugares, por isso, a autenticidade é sempre fruto de transformações daquilo com que nos vamos cruzando.

NÉ BARROS

O corpo é uma imagem,
um planalto, um inferno
Eduarda Neves

Há caminhos discretos que se afastam do som da rua. Estão próximos do ruído do mundo. Cedo aprenderam que dançar é uma possibilidade de viver. Não lhes basta falar a mesma língua. Não se permitem fechar na comunicação. São como os corpos que esperneiam. Bifurcam-se e desfazem-se. Prolongam a transmutação. Não limitam o perigo. É como esperar muito de alguém. Por vezes, é um salto para o precipício. Vestígios da aventura nietzschiana – eliminar a vontade e as paixões seria castrar a inteligência.

Interrogar a corporeidade. A pluralidade e o caos. Um trabalho de escrita de si que articula a complexidade crítica da matéria, do espaço e do movimento. Ligação impura. Movimentantes. A realidade da dança. Um lugar para o estranhamento. Um desajuste. Longos anos para uma ampla história. Assim é a obra coreográfica de Né Barros, cujo percurso se cruza com a história da dança contemporânea apresentada no Porto e da qual é uma das pioneiras e protagonistas. Sabendo nós que a arte não tem geografia, o seu programa artístico afirma-se como um excesso que transborda o presente e qualquer limite territorial. Derivas para corpos indeterminados. O tempo como voz que nos chega lá do fundo.

EDUARDA NEVES O coreógrafo francês Jerôme Bel1 disse numa entrevista que terá sido quando viu Philippe Decouflé2, na altura das cerimónias de abertura e encerramento dos jogos olímpicos de Albertville, em 1992, o mesmo ano no qual dois dos seus melhores amigos morreram de Sida, que a consciência súbita da morte o conduziu a não recuar perante o seu desejo de ser coreógrafo. Também Hervé Robbe3, numa mesa-redonda moderada por Catherine Millet no Théâtre de la Cité internationale, a 15 de novembro de 2014, publicada na revista art press, afirmou que o seu desejo de dança nasceu da prática deste terreno vago, um terreno de jogo, um espaço no qual inventamos grandes travessias, no qual o chão é móvel e produz cavidades. Identificas algum momento na tua biografia que tenha potenciado uma decisão ou experiência idênticas?

Né BARROS Com os dois exemplos que citas, estamos perante dois tipos de abordagem à dança. Um, se quisermos, mais de posicionamento, de necessidade de agir por motivos concretos, de apelo mais político até. Outro, por uma via mais sensitiva, especulatória, de exploração de um conceito aberto e de um enigma.

A minha vontade de ser coreógrafa nasce muito desta tensão entre estes dois pontos de vista: um corpo que não abdica do seu sexo, raça, etc., não abdica, se quisermos, da sua dimensão ética, e, ao mesmo tempo, permite reinventar-se, metamorfosear-se, ser coisa, ser um lugar, ser uma escrita. Era aqui que, para mim, se encontrava o desafio e me levará a uma decisão. Esta era a saída para resolver uma dança que muitas vezes estava em conflito dentro de mim. Precisava de encontrar uma via onde reencontrasse a atração por um corpo em movimento e que, intuitivamente, teria encontrado quando fui assistir a uma aula de ballet em criança.

De um ponto de vista mais pragmático, é verdade que muitas vezes existem acontecimentos, situações, que fazem disparar algo que já estava incubado ou mesmo iniciado, um terreno que de algum modo estava semeado. Esses momentos, funcionam como uma tomada de consciência daquilo que nos irá acompanhar por muito tempo.

Diria que, no meu caso, no meu final de adolescência, início de vida adulta, houve um conjunto de situações que me levaram a decidir pela dança, em vez da faculdade de ciências onde me encontrava. Foi numa fase de desistência que, entre outras coisas, vi um espetáculo que me marcou, num pavilhão do liceu Garcia de Orta, do Merce Cunningham com John Cage4. Ali, percebi que a dança me pertencia mais do que tinha imaginado, o corpo em movimento tornava-se tão poderoso a convocar múltiplos sentidos, mas, principalmente, porque se tratou de um reencontro com a arte. É nesse território que renascemos.

O teu corpo de trabalho é, desde o início, marcadamente transdisciplinar e de grande amplitude. Esse facto não se exprime apenas nos artistas que contigo colaboraram e colaboram (diria mesmo de quase todos os territórios artísticos) mas porque fazes implicar na tua escrita coreográfica uma multiplicidade de práticas, uma certa hibridez, (que vão desde o filme, performance, dança, teatro, até à música, instalação, som, fotografia e arte digital) que, por vezes, aproximam a tua cena de uma espécie de laboratório. Será assim?

Os recursos às diferentes disciplinas artísticas nos meus trabalhos nascem, quase sempre, da necessidade de criar camadas concorrentes, paralelas ou complementares em função de cada projeto. Por exemplo, quando penso no Muros ou no Neve, por razões diversas, a arquitetura de cena, assinada pelo João Mendes Ribeiro (Muros), entrava aqui como possibilidade de intensificar uma ideia de estrutura, de limite e de obstáctulo, ou de um teto que é um falso céu e que se pode transformar em paredes e até num chão, como no Neve, cuja cenografia é assinada pelo coletivo FAHR 021.3.

Se pensar no Million5, havia uma noção importante de que era um território que desaparece pela perda de população e, por isso, as espumas gigantes da artista plástica, Patrija Gilyte, foram exploradas por mim como placas flutuantes e que poderiam acompanhar os movimentos dos corpos ou, muito provisoriamente, servir de piso e parede incerta e frágil. Em No Fly Zone6, com Daniel Blaufuks, a imagem fotográfica aprisionada em caixas rolantes de luz permitia gerar um plano paralelo de contraste entre fluxo e isolamento das pessoas em zonas artificiais, onde voar não é possível. A peça Lastro estava associava à ideia de catástrofe, da catástrofe que se alastra e que altera os corpos. Lastro era a palavra para aquilo que se expande deixando rasto, que marca e que constrói memória, mas também para o que afunda os corpos.

A cenografia de Cristina Mateus com a música de Gustavo Costa intensificam este lugar subjetivo. Sob um falso céu, cuja cor muda do branco ao vermelho, os corpos irão dançar dois ciclos, numa quase repetição onde apenas a aparência desses corpos muda radicalmente, vestidos de forma mundana à lama que irá cobrir estes corpos seminus. Este céu acabará por cair sobre eles, mascarando a sua existência. Nessa quase repetição, o som persegue a ideia de um continuum com mudanças não óbvias, criando-nos, assim, a sensação de um não-progresso. Com o coletivo Haarvöl, em Revoluções, trabalhamos as revoluções sob a forma de reverberações visuais e sonoras, passando por ícones, mas sem nos fixarmos. O espetáculo funcionava como um contentor onde múltiplas revoluções artísticas e sociais conviviam e eram convocadas. A cronologia dava lugar à utopia ou ao lugar teatral onde tudo será possível. E, no final, ao som da peça de Steve Reich, Pendulum, os corpos regressam à nudez, regressam ao trauma inicial da nudez.

Interessa-me sempre que cada interveniente tenha a sua autonomia e que, no limite, possa existir por si só. São peças que se encontram e se enlaçam, que fazem parte de um mesmo tempo e lugar, mas podem partir a todo o momento e seguirem no seu isolamento. Em cada projeto que faço, tendo sempre a imaginar uma versão performance; em cada espetáculo poderia identificar a respetiva versão performance. Cheguei mesmo a fazer isso com alguns projetos, por exemplo, Solistas 17, Vaga 18, No Fly Zone.

Nesta transmutação, podemos pensar na ideia de dispositivo para este modus operandi. Gosto de pensar na ideia de dispositivo não apenas como operador conceptual, mas também como algo material e efetivo, e onde o dispositivo tanto serve para pensar a contemporaneidade como para testar novas ligações e gerar novos espaços de criação. Um dos conflitos que durante muito tempo senti – e que, de alguma forma, continuo subliminarmente a sentir –, era o da redução da máquina teatral a um espaço concreto que é o do palco de um teatro “à italiana”9, como a “casa” que evoluiu, mas que dista séculos de nós. Por isso, é muito importante que esse lugar seja testado, transformado, confrontado com linguagens de épocas diferentes e contrastado nas suas arquiteturas. No fundo, todas as expansões performativas ao longo do século XX vêm nesse sentido, no de uma revisão, direta ou indireta, desse lugar teatral tradicional. É preciso perceber a máquina teatral não como algo vinculado ao espaço, mas como um dispositivo. É preciso habitá-lo durante mais tempo, o que quase nunca é possível...

Nos teus trabalhos, nem sempre se verifica a existência ou a necessidade de uma dramaturgia pois a força do processo assume uma capacidade mobilizadora e a performance parece afirmar-se como possibilidade metodológica. Julgo que te interessa pensar a natureza do gesto e encontrar o seu prolongamento na forma como organizas o campo visual, fazendo operar um certo mapeamento cenográfico que também contribui para formalizar o teu programa coreográfico. Diria mais, em certos casos, talvez com mais vigor nas performances, é o limite do coreográfico ou, se preferires, do coreografável, que constitui o teu espaço de combate.

No limite do coreografável é uma boa forma de situar o meu processo de trabalho. Há a possibilidade de uma escrita que desafia a sua própria formalização. Há uma vontade de fazer conviver o informe com o coreográfico, ou o gesto que concorre com as outras disciplinas. É neste espaço tensional e elástico que pode emergir esse corpo dançante que é um quase-signo ou uma pessoa sem identidade, para lembrar Giorgio Agamben. Aliás, o filósofo diria que Kleist teria percebido muito bem que uma relação com uma zona de não conhecimento é uma dança.

Gosto de pensar nos meus ensaios como momentos performativos, por isso, tento que, o mais rapidamente possível, os intérpretes tenham matéria com a qual possam trabalhar. Nesse processo, a produção de movimento e de situações ocorre por aquilo a que chamo familiaridade de movimento. Vou produzindo material e os intérpretes retêm o que lhes ficou na memória imediata. A partir daí, inicia-se um segundo nível de composição.

O termo “familiar” permite aqui manter uma espécie de genética de movimento, uma matriz onde se percebem semelhanças e se mantêm as diferenças entre os gestos. Posso dizer que esta foi uma estratégia que fui desenvolvendo e que me permitia trabalhar com a imprevisibilidade, a multiplicidade dos corpos, a inadequação do gesto perfeito e reproduzido. E isto, sem perder uma coesão ou um nexo no produto final. (Este processo encontra algumas afinidades com “as semelhanças de família” wittgensteinianas; algo que percebi mais tarde). É curioso que o termo dramaturgia acabou por ser importado para a dança e tornar-se um termo-chave naquilo que permite intensificar todo um plano pró-textual na obra ou, pelo menos, laborar a dança como uma linguagem ou como uma dimensão mais sígnica, se quisermos. Nesta dimensão dramatúrgica há um jogo, que diria ser mais extrínseco, e onde a dimensão do familiar, a que me referi anteriormente, é também ela de jogo, mas a um nível mais intrínseco. Ainda que a expressão de dramaturgia do movimento seja expandida ao máximo, de forma a dar conta das variantes performativas e do corpo performático, não pode ser desvinculada de um certo estado de representação, de uma ação com uma finalidade.

Numa reflexão que tive oportunidade de fazer10, preferi falar de uma dramaturgia do corpo e não do movimento. A diferença, aqui, seria metodológica, porque o corpo convocaria muito do que é necessário para pensar o gesto em regime de referência e de clareza e, de algum modo, resistir ao enigmático. (Se calhar, resistir à tal zona de não conhecimento, ou seja, quando o enigmático não é conhecimento e é dança, como aludíamos há pouco a Kleist).

Paralelamente, lançava outra possibilidade operativa, a da cartografia do corpo, permitindo, nesta vertente, que o corpo pudesse entrar numa função menos de situação e mais de ação e deslocação. Posso dizer, e voltando outra vez à tua questão, que a maior parte dos meus trabalhos se colocam neste tipo de abordagem cartográfica. Com exceção de L.M. (Lady Macbeth)11 ou A História do Soldado, são trabalhos onde se encontra mais uma lógica dramatúrgica, ambos têm texto escrito. A dramaturgia, a cartografia, ou ainda uma noção aberta de partitura assumem-se como estratégias operatórias importantes para a dança contemporânea.

Poderia ainda acrescentar que me interessa a composição. Há, por vezes, um certo preconceito histórico em assumir a composição porque lhe é associado uma fixação de escrita coreográfica, demasiado balizada. Contudo, isso é reduzir o termo a uma determinada funcionalidade. Interessa-me a composição mais num sentido diagramático, talvez, e menos como um programa fechado. Lembro-me que em Exo, peça que fiz para o Ballet Gulbenkian12, um ensaiador ter-me-á dito que eu era muito experimental na composição. Só me disse isso quando a peça estava pronta. No entretanto, é provável que houvesse alguma inquietação porque eu demoro a “fechar” a peça. Durante o processo, preciso de testar, criar hipóteses, destruir, distorcer, criar novos cenários para um corpo... fintar a previsibilidade. Enquanto estou na onda, estou segura....

A relação entre o corpo e a tecnologia constitui um dos eixos de reflexão transversal ao teu percurso. Disse Jorge Luís Borges (e cito de memória) que “o encontro com o duplo é o encontro com a morte”. De que forma a tecnologia pode configurar esse duplo? Que sentidos tem não só o estatuto de imanência do corpo, mas também a condição do espectador nos teus projetos iniciais e, por exemplo, num dos teus últimos trabalhos como é o caso de UNA13?

Um dos projetos que me tem acompanhado ao longo dos últimos 12 anos é este laboratório entre performance e new media art, que desenvolvo com o João Martinho Moura14. Trata-se de uma pesquisa sobre interatividade e sobre os novos espaços narrativos para um corpo. Há uma evolução, que se iniciou com Nuve15, onde se explorava a relação do corpo coreográfico com o seu duplo artificial, no espaço-tempo. Pode dizer-se que essa relação se projetava como uma relação de intimidade entre o corpo presente e o virtual, o gesto mínimo tinha uma visualização macro, basicamente o trabalho desenvolvia-se neste horizonte. Posteriormente, com Co:Lateral16, trabalho que teve e continua a ter várias versões, funciona como um work-in-progress. O espaço imaterial expandiu-se e a imagem ficou mais próxima do público. Entre plateia e público existe uma tela transparente onde se projetam realidades misturadas e incorporadas. Digo incorporação, porque o gesto concreto do bailarino será transmutado para uma realidade virtual e reagirá interativamente com outros gestos e outros fatores; terá uma nova forma de vida.

Fizemos ainda uma versão instalação-performance, Co:Lapse17, e os traços em comum eram, de facto, a memória e a morte anunciada. De formas diversas, é dada a possibilidade de seguir o percurso do gesto, interagir com o nosso gesto passado e, dessa forma, somos colocados tanto no início como no fim da linha do gesto. Somos testemunhas do nascimento e da morte do gesto. Neste sentido, esse pensamento profundo do Jorge Luís Borges parece materializar-se nesta possibilidade tecnológica…

Com UNA, tentamos ir mais longe, em particular no plano da interatividade, que até ali estava mais reduzida ao performer, ainda que em Co:Lapse já tivéssemos introduzido a possibilidade do público intervir na projeção que resulta da ação do performer. Dizia, com UNA para além da condição imaterial, acresce o fator imersivo. Ali, é ao nível da dimensão virtual, onde imagem criada e imagem em tempo real se confundem, que se gera a interatividade entre as duas presenças, o performer e o público (apenas uma pessoa que usa óculos de realidade virtual). A interação, nesta peça, vai desde o contacto visual com o outro, em modo virtual, até ao toque real do corpo. Em tudo isto, o corpo é residual, surge apenas enquanto memória. O gesto processado em memória funciona como um espelho, é poderoso…

Não sei se é possível dizer que na tua obra os ecos sociais e políticos são quase sempre indiretos, ou seja, mais próximos de uma poética marginal e autónoma que evita diluir-se num certo ruído comunicacional e mediático. Inscreverias o teu programa artístico, ou alguns dos teus trabalhos, nesta dimensão?

Sabemos que existem muitos tipos de pressão para que se alinhem as obras e as intencionalidades. Os problemas no mundo são gigantes e temos de começar por algum lado. Somos todos responsáveis e não podemos ficar reféns de impotências. A arte pode ajudar? Claro que sim. De que forma? Creio que de múltiplas formas.

Concordo contigo quando referes que nos meus trabalhos os ecos sociais e políticos são indiretos e marginais a um excesso de atualização. Na verdade, tento utilizar a performatividade como uma ferramenta importante na devolução de mais humanidade, como todos o farão. Não estamos a falar de moral ou mensagem. Estamos a falar de tentarmos cruzar as coisas, distorcê-las, retirar-lhes o chão e tentar encontrar novos caminhos.

Não sinto que deva fazer uma notícia sobre um assunto, até posso usar documentação, usar uma fonte mediática, mas não pretendo informar. Sabemos que uma das questões que se imporia em seguida seria: e qual a importância de nos posicionarmos perante factos do mundo? É muita, certamente. Onde se travará a maior luta? Na rua ou através da arte? Tudo junto. Contudo, será no desconforto, no sofrimento, na resistência com o outro, no olhar o outro que tudo se irá jogar. Nos meus trabalhos vou tentado, através de espaços de pensamento, encontrar forças, memórias e imagens. Tal como as paisagens, máquinas, animais (que é, aliás, o subtítulo da série do meu mais recente projeto). O Michel Serres dizia que o sentido cruzado traz mais verdade.

Recordo-me que Anne Teresa de Keersmaker descreve as suas coreografias como arquiteturas líquidas e diz ainda que a melhor definição de dança seria a de uma arquitetura em movimento. Sem pretender encontrar um qualquer axioma ou condição essencialista, como descreverias as tuas propostas coreográficas e performativas tendo em conta a heterogeneidade de diálogos que estabelecem com outros saberes e práticas artísticas? Tens alguns princípios de organização a partir dos quais trabalhas?

Líquido é uma boa metáfora para o que pode fluir e para aquilo cuja forma não se fixa, nem se cristaliza, por contraste ao sólido que obstrui, bloqueia e quebra. Isso é falar do corpo, ou melhor, falar da vida do corpo, para ser mais específica. A ligação da arquitetura à dança tem, como sabemos, pontos fortes na história da dança (Oskar Shlemmer, Alwin Nikolais18, ou noutra direção, William Forsythe19, por exemplo) talvez porque encontramos não apenas as categorias universais relacionadas com o espaço ou a geometria, mas porque encontramos a afinidade com o lugar ou o habitáculo a partir do qual o corpo pode ser entendido. Retomando um pouco a primeira resposta, a partir do corpo que está nessa tensão entre o imediato e o indireto, entre o reconhecível e o enigmático, fui criando pequenas teorias e inventando neologismos, como o Movimentantes20. São figuras ficcionais, criaturas, que me permitiam jogar com o carácter múltiplo do corpo.

A noção que refiro muitas vezes, “Paisagem Inteligente”, reporta-se a este lugar onde o corpo se autorreferencia, ao mesmo tempo que pode convocar outras identidades e reconhecimentos. Quando comecei a relacionar-me mais com o cinema, debati-me várias vezes com uma insuficiência, ou impossibilidade, de a dança responder ao lado mais documental, digamos antes ao lado real da vida. Parece que estaria destinada ao domínio da representação e que seria melhor que não tentasse ser mais do que é… Esta dimensão que ia encontrando – de uma paisagem não apenas como momento de contemplação, mas de construção e do agir sobre a paisagem – parecia-me ir respondendo a algo que não se fechasse num jogo abstrato. Uma das melhores expressões de associação que encontrei entre dança e arquitetura foi em Wittgenstein, que dizia que a arquitetura é um gesto. Mas nem todo o movimento intencional do corpo é um gesto, como nem todos os edifícios serão um gesto. É interessante este pensamento que faz a separação entre um gesto de sobrevivência e um gesto artístico, fruto de uma experiência estética. Será provavelmente matéria para discussão, mas este pensamento definirá, sem dúvida, a possibilidade de passarmos do gesto necessário ao gesto de ligações possíveis. Isto leva-nos a uma certa suspensão dos sentidos vinculados às coisas, bem como à suspensão do sentido, de um modo geral.

É também por este lado fenomenológico que a análise da dança se tem de confrontar: não há performatividade que consiga contornar isso. Uma arquitetura líquida passa por este tipo de suspensão e de reconstrução. O mesmo poderíamos pensar para um outro tipo de arquitetura material – e que muitos críticos chegaram a acusar trabalhos de Oskar Schlemmer de reificação, por exemplo. Tive a oportunidade de trabalhar com a Lygia Pape na reconstrução dos seus Balés Neoconcretos21, obra de que gosto imenso, e que levanta questões muito interessantes sobre os limites do corpo e do plano de vida das formas que se podem descobrir a partir de um corpo motor. Em Million, faço uma referência explícita a estes ballets; a única diferença é que eles não são apenas o avesso, mas a frente e o verso. Nesta peça, a paisagem e o móbil da paisagem voltam a evidenciar-se. No meu caso, poderia dizer que, quando estou nos ensaios, na minha cabeça estão presentes a ideia dinâmica de uma paisagem inteligente e uma ideia mais estática, a de instalação.

Com a peça IO — Paisagens, Máquinas, Animais — que tiveste oportunidade de apresentar online, em 2021, no 89.º aniversário do Rivoli — dás início a um novo projeto. É possível adiantares alguma informação sobre esta série?

Senti a necessidade de pensar uma peça que não se esgotasse num único espetáculo, mas que pudesse dialogar com outras obras. A recorrência da paisagem e do corpo como paisagem nos meus projetos, mesmo não sendo sempre de uma forma óbvia, determinou este novo ciclo de trabalho que se iniciou com IO, que continuará com Neve e cuja terceira parte será Quinta-Feira à tarde. A premissa era manter dois bailarinos,

Beatriz Valentim e Bruno Senune, e o Flávio Rodrigues, responsável pelos figurinos das três obras e pelos elementos cénicos em IO. Esta aventura ficcional, como referi, deve resultar num diálogo inter-peças e intra-peça. Paisagens, Máquinas e Animais22: os conceitos aqui envolvidos evidenciam três pontos de fuga na definição do humano e, simultaneamente, abrem-se como categorias para pensar o corpo dançante. Estas dimensões estão presentes em todas as peças, embora o ponto de partida para cada uma delas se situe em cada uma das dimensões, respetivamente. Se, em IO, o corpo convoca o animal e o mitológico, o primitivo e o tecnológico, em Neve emerge a paisagem nas suas variantes, ou seja, paisagem como o exterior, o indivíduo como paisagem inteligente, a paisagem emotiva e sonora, a imagem filmada como paisagem narrativa. Quinta-feira à tarde, cujo título é uma tradução de um álbum do Brian Eno, irá focar-se na máquina e na possibilidade de expandir o corpo e o lugar. Por isso, nesta peça voltarei a colaborar com o João Martinho Moura e também com o Alexandre Soares, com quem fiz inúmeros trabalhos. Os FAHR 021.3 colaboram em Neve e em QuintaFeira à tarde. Gosto muito deste título, em particular, porque nesta peça nos iremos focar mais na máquina. Identificar o dia e a parte do dia, as horas, dá-nos a ilusão de que estamos perfeitamente situados, dirigidos, acertados. Contudo, a máquina dá-nos uma segurança provisória, um tempo esvaziado. Mas o interesse neste título está no que ele nos oferece sobre um estado de espírito: o que é que se pode passar numa Quinta-Feira à tarde?

Entrevista a Né Barros por Silvia Garzon, Atalaya – 2022

Né Barros é coreógrafa e investigadora, ao longo da sua carreira tem desenvolvido em ligação os seus trabalhos artísticos com os científicos. É doutorada em Dança (FMH, UTL), Master of Arts in Dance Studies no Laban Centre (City University, Londres) e investigadora no Instituto de Filosofia no Grupo de Estética, Política e Conhecimento (UP), onde realizou um pós-doutoramento. Iniciou a sua formação em dança clássica e, mais tarde, trabalhou dança contemporânea e composição coreográfica nos Estados Unidos, no Smith College. Nos seus projetos tem colaborado com artistas de fotografia, música, artes plásticas e cinema. Além do Balleteatro, estrutura que dirige e fundou, trabalhou com a Companhia Nacional de Bailado, com o Ballet Gulbenkian e com a Aura Dance Company. Co-dirige o festival internacional de cinema dedicado ao arquivo, memória e etnografia, Family Film Project. Professora na Esap e convidada em diversas instituições. Co-diretora das coleções Estética, Política e Artes e Máquinas de Guerra, da Faculdade de Letras do Porto. Tem publicados diversos artigos no âmbito da teoria e estética das artes performativas.

balleteatro.pt
familyfilmproject.com

¿Cómo llegaste al mundo de la danza?
Como entrou no mundo da dança?
Comecei em criança a estudar ballet. Foi por ter assistido a uma aula da minha irmã, um pouco mais nova, que fiquei de imediato com vontade de frequentar a dança. Contudo, a escolha profissional colocou-se mais tarde no final da adolescência. Até fazer essa escolha como forma de vida, desisti por um momento, pensando seguir ciências, como acabei por fazer entrando na faculdade de ciências do porto. Mas a minha escolha para profissão, relacionou-se com o facto de ter percebido que não era o ballet que me interessava, mas a dança contemporânea.

¿Cuál fue tu motivación? ¿Sigue siendo la misma después de tantos años dedicándote de manera profesional?
Qual foi a sua motivação? Continua a mesma coisa depois de tantos anos a dedicar-se profissionalmente?
Diria que a minha motivação foi sendo revista ao longo dos anos. Num primeiro momento, talvez o desejo de experimentar um corpo expressivo que vai para além da voz e que também não se cinja ao virtuosismo. Mais tarde, foi claro que mais do que o confronto de estar em palco, da performance, era o gosto da construção, da arquitetura em movimento, do corpo dançante por inventar e da magia da composição que mais me atraiu na minha escolha profissional

¿Qué significa para ti la palabra “Maestro”? y ¿Enseñar?
O que significa a palavra "Mestre"? e Ensinar?
Hoje em dia a palavra "mestre" tem um valor relativo. Estamos sempre preparados para testar, experimentar, contactar e depois seguir outros caminhos. A "luz" que um mestre pode fornecer, será muito útil e muitas vezes é o gatilho certo e necessário para fazer despoletar novos caminhos para as pessoas. Mas já não funciona tanto como seguir uma "escola" ou um método. Ou seja, a transmissão é hoje, e bem, mais problematizada, mais que os conteúdos ou testemunhos, são os processos que importam. Contribuir para que as pessoas desenvolvam senso crítico e criativo parece ser o mais relevante.

¿Quiénes fueron tus maestros? ¿Podrías compartir alguna anécdota que sigue acompañándote en tu memoria a lo largo de tus diferentes procesos creativos?
Quem eram os seus professores? Pode partilhar uma anedota que continua a acompanhá-lo na sua memória ao longo dos seus diferentes processos criativos?
 
Contactei com artistas muito importantes da dança, sobretudo quando vivi nos EUA. Mas talvez se tiver que pensar em mestres, diria que aprendi muito com a história das artes e da dança, em particular. Como interpretei a história a par do que pude experimentar com os diversos professores, talvez seja o mais marcante. Sem saber de onde veio, talvez diria que a persistência, o não desistir, o olhar para um problema e perceber o seu desafio criativo, é talvez o que está sempre presente nos meus processos criativos.

Cuando te enfrentas a un nuevo proceso creativo, ¿Tienes algo que se repita una y otra vez en cada uno de ellos o varían mucho uno del otro?
Quando confrontados com um novo processo criativo, tem algo que se repete vezes sem conta em cada um deles ou que variam muito uns dos outros?
Tento desafiar-me nos processos criativos de forma a evitar repetição de métodos, mas não totalmente. Há métodos que fui desenvolvendo e aprofundando que me têm acompanhado nos diversos desafios criativos. Esses métodos relacionam-se com conciliar valores estéticos com éticos e conciliar a exploração criativa com memória e arquivo.

¿Qué es lo que crees que le aporta la danza contemporánea más allá de la propia “danza” a un actor, director, en definitiva, un creador?  ¿Es la danza una herramienta para los “no bailarines y bailarinas profesionales”?
O que acha que a dança contemporânea traz para além da "dança" em si a um ator, realizador, em suma, um criador?  A dança é uma ferramenta para "bailarinos não profissionais"?
É uma boa questão. O que pode um corpo? O que pode a dança perante o mundo? Sabemos que desde logo, por se tratar de um corpo como matéria primordial da arte da dança, é já posicionamento político. Mas a dança também se projeta, constrói sentido e fenomenologicamente desafia o nosso entendimento. Ao contrário do cinema documental, por exemplo, onde podemos colher as imagens em estado de emergência, mesmo que colhidas através de um olhar subjetivo, a dança é sempre mediação em relação ao mundo que se reporta. Como alguém dizia: a arte devolve humanidade. A dança tem também esse papel e fá-lo de forma indireta, desestabilizando hábitos e propondo novas formas de olhar o corpo no mundo.

¿Cómo fue tu experiencia en el año 1999 en el Laboratorio TNT cuando te encontraste con ese de jóvenes en proceso de formación? Habías participado años antes en la ISTA en Portugal, ¿Qué enseñanza o recuerdo guardas de aquel encuentro?
Como foi a sua experiência em 1999 no Laboratório TNT quando conheceu a dos jovens em formação? Já tinha participado anos antes no ISTA em Portugal, que ensino ou memória escondem desse encontro?
Lembro-me muito bem do encontro com o TNT em Sevilha. Gostei muito desse trabalho com os atores. Lembro-me perfeitamente de ter preparado uma série de exercícios e de alguns dos alunos terem questionado, de não aceitarem a proposta sem senso crítico. Apreciei essa atitude. Eu estava segura do que lhes estava a propor, um jogo onde o corpo que se abstrai para conquistar novas esferas de sentido, mas, por vezes, esse trabalho coloca algumas resistências. Desmontar o gesto, torná-lo matéria para depois recuperá-lo e recompô-lo, é um exercício importante e difícil também. De qualquer forma, a minha sensação é que estava perante um grupo muito interessante e inteligente e isso é muito desafiante. Fiquei com uma bela recordação!